A fama de meca da pechincha já rendeu até samba: “25 de Março/ Mão de obra da Turquia (…)/ Aqui caro sai barato/ E tem até prestação”. “Bazares”, música atribuída a Adoniran Barbosa, vendedor de tecidos ali nos anos 1930, dá a pista de que a vocação comercial da 25 de Março é, no mínimo, octogenária.
A tradição é um dos motivos de a rua estar sempre acompanhada por números nas casas do milhão e do bilhão. Ela é a resposta à seguinte indagação: por que toda véspera de Natal leva 1 milhão de pessoas por dia a um trecho de 2,5 km do centro?
É porque o consumidor sabe que, desde os anos 60, a “25”, como é carinhosamente chamada, oferece os melhores preços da cidade e a maior variedade –de marcas, em alguns casos, de tamanhos e cores, em outros.
“Quem nunca ouviu falar da 25? Ela tem uma grife que se reforçou ao longo dos anos”, diz Heliana Vargas, professora de arquitetura da USP e especialista em comércio e desenvolvimento urbano. “Existe uma imagem, e ela é real, de que ali se compra em quantidade, variedade e em conta.”
Para sustentar essa reputação positiva, os comerciantes locais se valem da economia de escala. Isso significa que, diante do afluxo médio de
400 mil pessoas por dia (em períodos não festivos), as lojas podem reduzir o percentual de lucro na venda de cada peça para ganhar no volume total.
A estratégia tem dado certo. Em 2011, o comércio local faturou cerca de R$ 17 bilhões, valor que representa quase um quinto do auferido por todas as lojas de shopping do Brasil. A cifra tem se mantido estável e deve ter leve alta neste ano, apesar do alto endividamento das famílias e do baixo crescimento do país.
“O volume de clientes é muito grande, o que permite oferecer preços mais interessantes”, explica o economista Claudio Felisoni de Angelo, professor da USP especializado em varejo.
A pouca sofisticação das instalações também entra na conta e torna a área mais competitiva que um shopping, por exemplo. “É comércio em condições espartanas, sem luxo, e em região urbanisticamente deteriorada”, diz Angelo. Já o acesso direto a distribuidores corta custos intermediários, como os relacionados ao transporte.
CULPA DA ENCHENTE
A tradição comercial da 25 começa ainda no século 19, com a abertura das primeiras lojas de tecido pelos imigrantes árabes. Periférica à época, a rua tinha moradias mais baratas do que as áreas altas da cidade.
A vocação têxtil estreitou laços com fornecedores e criou um polo atacadista na região, que ganhou fama nacional. Até hoje, 60% dos frequentadores vêm de fora da capital.
Mas o renome pelos bons preços só surgiu nos anos 1960, ao cabo de uma grande enchente. “Foi o pulo do gato dos árabes”, explica o economista Lineu Francisco de Oliveira, autor do livro “Mascates e Sacoleiros” (ed. Scortecci), sobre a história da região. “Como os tecidos acabaram inundados, os comerciantes foram forçados a fazer liquidação das mercadorias. Virou uma estratégia de venda.”
As décadas de 70 e 80 trouxeram os sacoleiros, que revendiam ali produtos vindos do Paraguai, sobretudo eletrÔnicos. A diversificação tirou o monopólio dos tecidos e deu espaço para o varejo, que ficou mais forte nos anos 90. Hoje, segundo um dos diretores da Univinco, que representa os lojistas da 25 de Março, só 30% das vendas na região ainda são por atacado.
E foi assim que paulistanos de todas as classes sociais passaram a frequentar a 25, diz Eduardo Esquerdo, filho do fundador e um dos gestores da Armarinhos Fernando, uma das lojas mais tradicionais dali. “Antes, abríamos às 7h e fechávamos cedo. No sábado dava para jogar bola na rua.”
Com cinco filiais na área e outras 11 espalhadas pela Grande São Paulo, Esquerdo diz que seus clientes atribuem certa mística às unidades da 25. “Dizem que aqui é tudo diferente, pensam que nas outras lojas da rede não encontram o que temos aqui.”
A reforma do Mercado Municipal, entregue em 2004, atraiu nova leva. “Começou um boca a boca violento, que fez aumentar o número de consumidores finais”, conta Marcelo Mouawad, herdeiro de outro ponto tradicional, a loja de brinquedos Semaan. Em 2013, ele inaugura um novo andar no mesmo endereço, voltado a bonecos e itens de colecionador.
Mas nem todos comemoram a atual fase na 25 de Março. “Foi um ano morno”, diz Elias Ambar, dos Armarinhos Ambar e um dos oito diretores da Univinco. “O Natal está dando uma melhorada, mas, em termos de ano, o crescimento foi pequeno.”
Ambar calcula que o aumento do faturamento em 2012 deva ser até três vezes menor do que foi no ano anterior. “Está difícil, o pessoal está muito endividado”, conta.
Para Jorge Dib, à frente do Depósito de Meias São Jorge, o clima do ano também cobrou seu preço. “O forte do nosso atacado é o inverno, que quase não veio neste ano.”
DO POP AO LUXO
Engana-se quem pensa que a 25 só atrai as classes mais baixas. Cada vez mais a região vê uma clientela A e B circular em meio a ambulantes que anunciam bolsas “lui vitão” (no lugar de Louis Vuitton ) e “cabelo natural”. Segundo pesquisa Datafolha de 2011, 84% dos paulistanos com renda familiar superior a dez salários mínimos por mês já fizeram compras na 25.
“Tem madame que fala que não vem, mas vem”, garante Solange Chohfi, que dirige a Niazi Chohfi, loja que começou ali há 85 anos vendendo tecidos e já se expandiu para artesanato, roupa íntima e utilidades domésticas. “O público quis mais diversidade, e a gente teve que ir atrás”, diz. Desde o ano passado funciona no nono andar do prédio um café com vista para a rua e que serve até sorvete de grife.
“O consumidor está mais livre dos rótulos, circula mais entre o pop e o luxo”, afirma Elizabeth Salmeirão, diretora de contas da consultoria TNS Research International. Em 2009, a empresa mapeou o consumo na região e apontou crescimento de 13% em três anos na clientela de classes A e B. “O mesmo consumidor que vai à rua Oscar Freire em busca de marcas vai à 25 de Março se estiver atrás de uma bolinha de Natal, que não precisa ter marca”, afirma.
A pesquisadora de tendências Camila Toledo transita bem entre esses dois mundos, prestando consultoria tanto para butiques dos Jardins quanto para lojas da 25. “O que muda é o luxo dos materiais. O acesso ao design está mais democratizado”, afirma a diretora do birÔ internacional Style Sight. “A sandália gladiadora [com tiras que sobem até a canela] tem em todo lugar. Em alguns, com peças mais baratas, e, em outros, com peças mais caras.”
“A indústria vive aqui porque a 25 é uma aula sobre o que é tendência”, diz Mouawad, diretor da Semaan. Para ele, o grande movimento de clientes dita o termÔmetro da moda para os lojistas, sempre antenados.
Oliveira, que resgatou a história daquele comércio, concorda. “Mesmo que um certo item não seja tendência, ele acaba virando uma só por ter sido exposto a um preço baixo e vendido em larga escala.”
ESPECULAÇÃO E SUCESSÃO
O que é tendência também aparece rápido nos camelÔs, não raro na forma de mercadorias piratas.
Desde 2009, a Polícia Militar atua na região na chamada Operação Delegada, um convênio com a prefeitura para fiscalizar o comércio irregular de ambulantes. Em maio de 2012, o prefeito Gilberto Kassab (PSD) revogou um decreto que permitia todo tipo de comércio ambulante por ali e cassou licenças, mas foi impedido de removê-los por liminar concedida em junho.
A Guarda Civil Metropolitana atua principalmente nas galerias comerciais. Na última sexta-feira de novembro, a sãopaulo acompanhou a apreensão de mercadorias falsificadas em um shopping da rua 25 de Março, especialmente capas de iPhone com logotipos de marcas famosas.
Segundo Edsom Ortega, secretário municipal de Segurança Urbana, mais de 24 milhões de itens irregulares foram apreendidos nos últimos dois anos naquela área, saldo de 27 operações realizadas em parceria da GCM com órgãos como a Receita Federal.
“Hoje mudaram a estratégia para não terem tanta perda”, diz. “Ampliaram a venda pela internet e passaram a vender mais com catálogos”, afirma o secretário.
A reportagem avistou ambulantes oferecendo tênis e camisetas de marca, munidos com listas cheias de fotos. Funciona assim: o cliente escolhe o produto no catálogo, e o ambulante busca na hora, em algum depósito clandestino da região, ou então o leva para uma pequena loja próxima, escondida da fiscalização.
As novas galerias também são queixa dos comerciantes tradicionais. Repletas de pequenos estandes, em geral ocupados por imigrantes chineses, tomaram o espaço que antes era de lojas antigas. “Tem muita especulação imobiliária por trás disso”, afirma um comerciante que não quer ser identificado.
“Eles oferecem mais dinheiro para se estabelecer e levam o proprietário a dividir o imóvel em vários boxes para alugar”, revela, sob anonimato.
Na estimativa de Eduardo Ansarah, outro dos diretores da Univinco, isso deve ter ocorrido em até 20 estabelecimentos nos últimos anos. Mas, para ele, o fenÔmeno se deve mais à sucessão do que à especulação imobiliária.
“Eu, que fui criado aqui, criei gosto. Mas nem todos os sucessores querem continuar o negócio e acabam dando espaço para as galerias”, diz Ansarah, 30, que é da terceira geração de uma família que está na área há 80 anos.
Outra preocupação local recai sobre eventuais reformas. Para os comerciantes, a criação de um bulevar para aumentar o espaço de pedestres e excluir carros é inviável. “Essa ideia paira de tempos em tempos”, afirma Ansarah. “Alargamos a calçada, mas não pode fechar a rua por causa da carga e da descarga.”
Ambar tem a mesma opinião: “Aqui não cabe banco na calçada. As pessoas vêm preocupadas em circular”. O comerciante espera que a próxima gestão na prefeitura não avente a ideia do bulevar.
O apelo talvez ganhe outro significado no ano que vem. O primeiro emprego do futuro prefeito, Fernando Haddad (PT), foi ali na região, na loja de tecidos do pai. “A gente se trombava toda hora”, lembra Ambar.
Homero Sergio 1973/Folhapress; Arquivo Folha/25.mar.1973; Dimang Kon Beu 9.dez.1994/Folhapress; Moacyr Lopes Junior 12.jan.2004/Folhapress | ||
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