Perseverante, Natalicia Tracy não permitiu que uma desilusão com o que parecia ser um bom prospecto de trabalho doméstico nos EUA lhe levasse embora o tão alardeado sonho americano.
Quem hoje visita a página da doutoranda e professora de sociologia da Universidade de Massachusetts, em Boston, não imagina que Tracy chegou há 20 anos nos EUA para trabalhar como babá para uma família de médicos brasileiros por um período temporário de dois anos. Aos 19 anos de idade, nem sequer havia terminado o estudo secundário.
“Eu ia morar com a família e ganhar um salário justo. Mas chegando aqui, comecei a trabalhar sete dias por semana. Ficava com a criança durante a semana e até no fim de semana, a noite toda, porque eles queriam sair e se divertir”, disse Tracy à BBC Brasil.
“Cuidava da casa, não tinha acesso à TV, não podia ligar para o Brasil, porque era caro, e nem podia receber correspondência, porque eles não deixavam pÔr meu nome na caixa do correio. Ganhava US$ 25 por semana para fazer uma jornada de 80 a 90 horas, quando o salário mínimo era em torno de U$ 5 por hora.”
Apesar das condições, ela cumpriu o acordo. Porém, ao fim dos dois anos, se recusou a voltar para o Brasil: se concentrou em seu objetivo inicial de dar prosseguimento aos estudos e o resto, nas suas palavras, agora “é história'”
Formada em sociologia e psicologia e mestrada em sociologia aplicada à imigração, Tracy está em vias de escrever sua tese de doutorado sobre o impacto das políticas migratórias em famílias com casais de nacionalidades distintas no Brasil e em Portugal.
Seu passado pode ter virado “história”, mas ela não esqueceu as lições, e hoje aconselha pessoas em situação semelhante, como diretora-executiva do Brazilian Immigrant Center (Centro do Imigrante Brasileiro), em Boston.
“Quero deixar bem claro que essas coisas que aconteceram comigo continuam acontecendo. Eu fui forte, resisti. Aprendi a língua com um dicionário que carregava para todo lado, fui para a universidade e me formei. Mas outras pessoas, mais simples, podem ser vítimas e não saber como sair dessa situação.”
'Ilusão'
Que histórias similares continuam acontecendo, é fato confirmado por um estudo da Aliança Nacional dos Trabalhadores Domésticos (ou NDWA, na sigla em inglês), o primeiro a fazer um retrato do trabalho doméstico nos EUA.
Entre mais de 2 mil trabalhadores e trabalhadoras domésticas entrevistadas pelas diversas organizações que participaram do estudo, aproximadamente um quarto disse receber salários abaixo do mínimo e um em cada três declarou trabalhar longas jornadas diárias sem intervalos.
Raros são os contratos nessa categoria, e mesmo quando existem, eles são frequentemente descumpridos. Se essas condições são a regra para o trabalho doméstico em geral, a vulnerabilidade dos imigrantes, legais e sobretudo ilegais, é especialmente preocupante.
“Quando mudam de país, as pessoas aplicam a mesma cultura e os mesmos valores que trazem de casa”, avalia Tracy. “Mas você está numa situação em que não tem amigos, não tem família, isolada num subúrbio, sem falar inglês direito, sem transporte, sem apoio e sem liberdade para nada.”
Capixaba de Vitória, Luci Morris, 54, disse à BBC Brasil que veio para os Estados Unidos com a “ilusão” de juntar dinheiro e comprar uma casa de volta no Espírito Santo.
Depois de perder o emprego como auxiliar de enfermagem e tentar, sem sucesso, a vida em uma oficina de torno e solda de um irmão, deixou-se seduzir pelas histórias que ouvia sobre as possibilidades na América do Norte.
“É pura ilusão. Quem está no Brasil vê uma coisa mas quando chega aqui é outra. Você começa trabalhando fazendo um serviço, depois amanhã (os patrões) querem que faça mais uma coisinha, e amanhã outra, e você acaba se acostumando”, relata.
Brasileiras
Morris cuida de uma menina de quatro anos para um casal de filipinos em Boston. Não há estimativas sobre quantas brasileiras e brasileiros fazem trabalho doméstico nos EUA, mas a capital de Massachusetts é notória pela imigração brasileira, e essa mão de obra é considerada dominante principalmente entre as babás e faxineiras.
Dona de uma simpatia cativante, falando à BBC Brasil por telefone enquanto cuidava do “meu bebê”, a capixaba conta que recebe em dia o seu salário de US$ 440 por semana, tem os impostos descontados e goza de pequenas liberdades na casa dos patrões que, sabe, outras colegas não têm.
Entretanto, diz que nunca viu um centavo pelas frequentes horas extras. “Eu queria que os patrões fossem mais honestos com a gente. Que eles vissem o lado da gente. Se eles trabalhassem 15 horas em um dia, não iam querer receber as 15 horas?”, questiona.
“Eles colocam os óculos escuros para dizer que não (notam a exploração), mas conhecem a lei. Eles têm os negócios deles, eles sabem que têm de botar tudo em ordem, fazer tudo direitinho. Por que com a gente eles não fazem isso?”
Como muitas outras domésticas, a brasileira sabe que tem razão, mas não gosta 'de briga'. Indicada por uma amiga, tem com os patrões um entendimento verbal que lhe dá pouco poder de barganha. Mas opta por “engolir os sapos” e ficar no serviço porque gosta de acompanhar o crescimento da sua “bebê”.
“É igual quando a pessoa hipnotiza o outro, sabe? Eles vêm com uma conversinha, e eu tenho pena e fico. Porque eu gosto do meu bebê. É assim, a gente pega afeição com as crianças, é como se fosse uma filha minha”, explica.
Mas ela sabe que, “se a gente se acomodar com isso, vai ficar pior”.
“Tem dias que eu faço as contas e digo, meu Deus, meu dinheiro não vai dar. A gente tem de pensar na gente. Porque eles estão melhorando a vida deles. Agora, a gente está estacionando.”
Misturando o português e o inglês, Morris diz que um dos seus planos , no ano que vem, é encontrar um novo emprego e ganhar um aumento de salário.
“Peço a Deus para me ajudar a procurar um emprego que me pague mais. Já estou com 54 anos. Ano que vem, em nome de Jesus… I hope so. I hope.”
deixe seu comentário