Na primeira vez em que viram os gêmeos Raissa e Benjamin em um abrigo, os engenheiros Fabiana e Marcus Clark não tiveram dúvidas de que estavam diante de seus filhos. As dificuldades enfrentadas pelas crianças, na época com três anos, não amedrontaram o casal. “Tivemos uma identificação muito grande desde o primeiro momento em que nos vimos”, diz Fabiana à BBC News Brasil.
Raissa e Benjamin nasceram com paralisia cerebral, que ocasionou diversas dificuldades para o desenvolvimento deles. Os irmãos foram entregues para a adoção logo que nasceram.
Enquanto os gêmeos vinham ao mundo, Fabiana e Marcus tentavam ter um filho biológico. O desejo de engravidar, porém, não se concretizou. “Descobrimos que nós dois temos problemas de fertilidade”, relata a engenheira química, hoje com 44 anos.
O casal optou pela adoção. A princípio, queriam crianças de até dois anos – as que estão entre as mais procuradas por pretendentes. Depois, estenderam a busca para crianças com até quatro anos e incluíram aquelas com deficiência. Pouco depois, foram chamados para conhecer Raissa e Benjamin.
“Costumo dizer que quando os conheci, descobri que Deus havia preparado dois pacotinhos bem especiais para a gente”, diz Fabiana. “Quando olhei para eles pela primeira vez, me emocionei muito. Eu não sei explicar, mas sabia que estava olhando para os meus filhos”, diz Marcus, de 47 anos.
Oito anos depois, Fabiana e Marcus afirmam que mudaram completamente desde a chegada dos filhos. “Eles nos ensinaram muita coisa. Hoje me considero uma pessoa melhor”, diz Fabiana.
A decisão de adotar os gêmeos com paralisia cerebral é considerada relativamente incomum. Dos 36,3 mil pretendentes a adoção no Brasil, somente 1.490 aceitam menores com deficiência física e 1.150 aceitam uma criança com deficiência mental — os dados são do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), criado há cerca de um ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Segundo o SNA, atualmente existem 4,9 mil crianças ou adolescentes disponíveis para a adoção no Brasil e 2,1 mil em processo de adoção. Dentre as disponíveis para adoção, há 424 com problemas de saúde diversos, que incluem desde o vírus HIV a doenças cardíacas. Há também 368 crianças ou adolescentes deficientes — com problemas físicos ou mentais.
Era considerado extremamente difícil que Raissa e Benjamin encontrariam uma família, por se tratar de dois irmãos com deficiência. “Quando incluímos que nossos filhos poderiam ser deficientes, rapidamente fomos chamados, porque infelizmente há muita pouca procura por essas crianças”, diz Fabiana.
O sonho de ter filhos
Quando se casaram, há 20 anos, Fabiana e Marcus construíram uma casa pensando nos filhos que teriam dali a alguns anos. A residência, localizada em Jambeiro (SP), possui cinco quartos. Na época em que decidiram que era o momento de ter o primeiro bebê, descobriram que os problemas de fertilidade tornavam quase improvável que pudessem ter um filho biológico. “Decidimos recorrer à fertilização in vitro. Mas também não deu certo, porque eu tive muitas dores por conta do tratamento e desistimos”, conta Fabiana.
O casal passou a ler e acompanhar discussões sobre adoção. “A ideia de adotar partiu da Fabiana. No início, eu estranhei o fato de ter um filho que não tivesse vindo de mim. Mas quando li sobre o assunto e vi outras famílias que haviam adotado, percebi que era outro tipo de “gravidez” e que as famílias eram tão felizes quanto aquelas que tiveram filhos por meios naturais”, relata Marcus.
Meses depois de entrar na fila de pretendentes para adoção, o casal aumentou a idade das buscas de dois para quatro anos e retirou qualquer exigência relacionada à saúde. “Nós fomos reavaliando o modo como queríamos nossos filhos”, diz Fabiana. Quando adotaram menos critérios, logo foram chamados para conhecer Raissa e Benjamin.
O dia em que conheceram os filhos é lembrado com imenso carinho pelo casal. “Lembro que era um frio na barriga indescritível. Meu maior medo era que as crianças não gostassem da gente”, diz Marcus.
Antes de encontrar as crianças, eles passaram por uma longa conversa com uma assistente social, na qual descobriram mais sobre a história de Benjamin e Raissa. Eles souberam que os gêmeos nasceram prematuros, aos sete meses. “A gravidez deles não foi planejada e a mãe biológica não fez o pré-natal adequado. Houve várias intercorrências durante a gestação e isso causou a paralisia cerebral. Quando eles nasceram, a mãe já tinha deixado claro que queria que eles fossem levados para a adoção, porque não tinha condições para ficar com eles”, relata Fabiana.
Após conhecer a história dos gêmeos, o casal foi até o abrigo. Quando chegaram, avistaram o pequeno Benjamin pela fresta do portão. “Foi uma emoção muito forte, como senti poucas vezes em minha vida”, relembra o engenheiro mecânico.
Ao entrar, Marcus pegou Benjamin no colo e comoveu duas assistentes do abrigo em que as crianças estavam. “Elas me falaram horas depois, que o Benja não ficava no colo de homem de forma alguma, porque tinha medo. Elas me disseram que quando ele foi para o meu colo, tiveram a certeza de que eu era o pai dele”, relata o homem, que se emociona ao lembrar o momento.
“Depois do nosso primeiro encontro, não tivemos dúvidas de que eles eram nossos filhos”, conta Fabiana. A partir de então, o casal deu entrada nos procedimentos para oficializar as adoções.
A vida com os gêmeos
A chegada dos filhos mudou completamente a vida do casal. “A vinda deles melhorou muito os nossos dias”, diz Fabiana. A paralisia cerebral deles não foi um problema para os pais. “Eles não fazem balé ou judô, como tantas outras crianças, mas a rotina deles é muito similar às outras crianças. A diferença é que eles precisaram de muito acompanhamento para que pudessem evoluir”, pontua a mãe.
A paralisia cerebral se desenvolve em razão de uma lesão no cérebro, que possui diversas causas, que podem ocorrer durante a gestação, no parto ou mesmo nos primeiros anos de vida da criança. Ela causa um comprometimento no desenvolvimento do bebê, que poderá acarretar uma limitação motora leve, moderada ou grave.
“A lesão cerebral que leva à paralisia pode acontecer durante a gestação, por exemplo, em decorrência de uma malformação cerebral ou uma infecção congênita. Pode ocorrer no momento do parto, em razão de complicações. Após o nascimento, pode ser motivada por situações como hemorragia, meningite ou trauma craniano”, explica o neuropediatra Ciro Matsui. Estima-se que há cerca de 17 milhões de pessoas que vivem com paralisia cerebral no mundo.
Nos níveis mais leves da paralisia, ela causa comprometimento motor quase imperceptível. Nos mais graves, a criança não consegue andar, sentar e nem sequer consegue levantar o pescoço.
Raissa tem nível moderado da paralisia, enquanto o irmão possui um grau mais avançado e tem menos desenvolvimento. Desde pequena, ela é altamente cuidadosa com ele. “Ela se preocupa com ele o tempo todo, porque entende que ele tem muito mais dificuldades. Desde o abrigo, a minha filha tem esse cuidado imenso”, pontua Fabiana.
Raissa admite que um de suas maiores preocupações é proteger o irmão e ajudá-lo no cotidiano. “Muitas vezes, preciso traduzir o que ele fala para que meus pais possam compreendê-lo”, explica a garota, hoje com 11 anos. Ela se comunica e forma frases completas. O irmão tem dificuldades para se comunicar.
Desde pequenos, eles receberam acompanhamento com fisioterapeutas e fonoaudiólogos para que pudessem se desenvolver melhor.
Os médicos chegaram a afirmar para os pais que eles nunca andariam. Raissa passou por cirurgias nas pernas e conseguiu aprender a andar sozinha. Já Benjamin tem grande atraso de aprendizagem e precisa de apoio para caminhar. “Os dois avançaram muito nos últimos anos. Cada progresso foi uma vitória para nós”, diz Fabiana. Atualmente, a mãe é a responsável por fazer o acompanhamento dos filhos, com atividades que aprendeu ao longo dos anos.
Matsui ressalta que o acompanhamento adequado é fundamental para que uma criança com paralisia cerebral possa se desenvolver. “Não existe um tratamento curativo para uma criança com a paralisia. Não é possível reverter a lesão cerebral. Mas há tratamentos que são determinantes para melhorar a qualidade de vida que essa criança vai ter”, explica o neuropediatra.
“A principal abordagem terapêutica é a reabilitação, com fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia para que a criança seja estimulada e para que seu cérebro possa apreender novas funções. O início precoce da reabilitação é extremamente importante para o melhor resultado dessas intervenções”, acrescenta Matsui.
'Heróis sobre rodas'
Uma das formas que Fabiana e Marcus encontraram para ajudar os filhos a progredir foi a prática de atividades físicas. Apaixonados por esportes, os pais decidiram levar as crianças para acompanhá-los. “A Raissa sempre pedia para me acompanhar nas atividades, mas nunca era possível. Até que um dia decidi criar uma forma para que ela pudesse ir também”, diz Fabiana.
Os pais utilizaram um triciclo para levar os filhos para correr junto com eles. “As crianças adoraram a experiência e ficaram muito felizes. Foi uma experiência muito marcante”, comenta. A partir de então, eles criaram, há quase três anos, o projeto “Heróis sobre rodas”. “Pensei que se meus filhos gostaram, outras pessoas com deficiência também ficariam felizes com essas atividades”, diz a engenheira.
O projeto incentiva pessoas com alguma deficiência a praticar atividades físicas. “As pessoas pagam por volta de R$ 40 para competir. Usamos parte do valor para comprar triciclos para crianças que não têm o equipamento”, comenta Fabiana.
Há seis meses, a engenheira tem mais tempo para se dedicar ao projeto e aos filhos. Isso porque ela deixou o trabalho de meio período em uma empresa, onde estava há oito anos. “Era muita correria”, conta. Hoje, a rotina dela é focada nas crianças e no projeto.
A engenheira argumenta que o “Heróis sobre rodas” é uma das formas que encontrou, junto com o marido, para que os filhos não se sintam excluídos. “A vida de muitas crianças com deficiência acaba se reduzindo à escola e à fisioterapia. Mas não precisa ser somente isso”, diz Fabiana.
Os gêmeos demonstram alegria com o projeto criado pelos pais. “Gosto bastante de praticar esportes. Faço corrida com handbike (bicicleta com as mãos) e gosto muito, pois tenho bastante força nos braços”, diz Raissa.
Os esportes têm ajudado Raissa e o irmão a progredir. A garota afirma que o amor da família também é fundamental para que ela e o irmão possam evoluir. “Eu lembro que o abrigo não era ruim. A gente ia para a escola e também brincava bastante. Mas as 'tias' cuidavam de várias crianças. Nada se compara a uma família, que é dedicada somente a nós dois”, diz a menina.
A garota está no sexto ano do ensino fundamental, enquanto o irmão está no quinto. Ela não precisa mais de ajuda para acompanhar as aulas. Benjamin ainda necessita de acompanhamento constante
Quando crescer, Raissa quer ser médica veterinária, para cuidar de gatos e cachorros. “Gosto bastante de bichinhos. Temos cinco cachorros e gosto muito”, diz a garota.
Felizes com a evolução dos filhos, Fabiana e Marcus temem que eles tenham dificuldades para conquistar a independência. “Espero que a sociedade esteja cada vez mais aberta a aceitar as diferenças e que as pessoas entendam que ninguém é igual. Espero que meus filhos não sejam alvos de comparações cruéis que possam minimizá-los. Eles precisam ser aceitos e respeitados como são”, declara Fabiana.
Para os pais, Raissa e Benjamin foram a maior lição que tiveram ao longo da vida. “Confesso que eu não entendia muito sobre as dificuldades enfrentadas por um deficiente, mas minha visão sobre o assunto mudou completamente depois dos meus filhos. Hoje tenho um olhar mais afetuoso sobre o tema. Sou um ser humano um pouco mais evoluído”, diz Fabiana.
“Descobri que os preconceitos e os bloqueios são criados por nós, pois está em nossas cabeças. É importante se permitir olhar sobre um novo ponto de vista. O amor vence fronteiras”, declara Marcus.
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